quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Revisão de textos e transformações da língua


Colegas,

Deixo aqui um pequeno texto que escrevi, que era, à partida, uma reflexão sobre a revisão de textos, e que acabou por ser, de forma mais geral, sobre a evolução da língua, seu uso e legislação.


O desafio central da revisão textual quando esta não se limita a corrigir o desvio acidental nem toma já a forma de uma abordagem poética que chega a roçar a co-autoria revela-se no desconforto de ser toda a aproximação ao texto um confronto com o devir da língua, onde o revisor trata, a cada intervenção, de definir o que é nela le propre et le sale. Esse desconforto terá, provavelmente, o seu fundamento na familiaridade no sentido de algo que é profundamente íntimo e constitutivo de toda a experiência e, em simultâneo, inconspícuo e irrefletido que impele a tomar toda a novidade ou estranheza na língua como bárbara, disparatada, desnecessária ou deselegante. Assim tendem, com ou sem uma justificação coerentemente articulada, as distorções da oralidade a ser vistas como degradações grosseiras, as assimilações de termos alóctones como sintomas de um complexo de inferioridade nacional e as reformas ortográficas como imposições dilacerantes sobre a vivência cultural, tanto privada como coletiva. Verboses (verborreias?), lexifagias, logonomias: transformações que são produtos do desenvolvimento “interno” de uma língua, da sua relação com formas de falar o mundo que lhe são “externas” e de estipulações institucionais, que serão, provavelmente, algo intermédio. Aí, nas fronteiras entre a forma oficial, petrificada, da língua e as suas metamorfoses constantes, deparamo-nos com problemas insolúveis de determinação daquilo que é o uso legítimo ou ilegítimo dessa língua, problemas que tornam verdadeiramente aliciante a perspetiva de uma heterografia individualista absoluta (paragrafias): a legalidade de infinitos idioletos, feita de tensões e ajustes permanentes, de novos problemas de tradução mas também de novas possibilidades de expressão e compreensão. A “palavra original”, originária, ainda que seja imaginário esse seu estatuto primordial, só pode ser pensada como berço de multiplicidades o que nunca chega, no entanto, a implicar a impossibilidade do diálogo. É que dois ramos nascidos de um mesmo tronco central encontram sempre forma de se voltarem a cruzar; aquilo que não alcançam é uma nova fusão que não deite a perder dimensões profundas de cada um e que não deixe cair no esquecimento ou no ridículo da maquilhagem toda a sua história de desenvolvimento individual. A metáfora vegetal esgota-se no momento em que se reconhece que a evolução de duas formas da mesma língua não forma sempre histórias paralelas e isoladas, mas dá-se frequentemente numa dinâmica de oposição e conflito entre os seus falantes. Neste confronto, tornam-se evidentes as dimensões contextual-sociológica e afetiva da palavra, que ultrapassam o significado que lhe é atribuído pela cultura oficial; cargas afetivas que se desenvolvem e alcançam a sua maior expressividade no discurso oral. O desdém folclórico pela erudição pedante não se reduz a um qualquer mecanismo de defesa perante algo que pertence a uma esfera superior; esse escárnio revela o patético de uma linguagem desligada de toda a vivência. Uma literatura que ignora a oralidade é uma literatura morta. O leitor que ouve a sua leitura estranha mais um arcaísmo etimologicamente exato que o modismo naturalizado. Inversamente, são as convenções do olho, e não do ouvido, que são violadas (Krapp) quando as formas da oralidade surgem no papel como na formulação de Kittler, “olhos e ouvidos [são] autónomos” perante a linguagem, ainda antes do advento das tecnologias de reprodução em massa: estranheza perpétua da sensorialidade orientada para a linguagem, com expectativas irreconciliáveis que só podem encontrar ressonância na figura imaginária da linguagem monolítica como totalidade rígida, sem brechas onde se abra a possibilidade da diferença. Mas mesmo ignorando esta experiência fragmentada do sujeito falante, a oficialização destas metamorfoses nas reformas da legislação linguística, a “adaptação da grafia à oralidade” desperta sempre várias questões importantes: a perda de profundidade histórica e ocultação do devir dos itens lexicais, frequentemente com o propósito de os reabilitar para um uso não fundado na vivência que lhes deu origem; a dificuldade em argumentar que a implementação de uma nova grafia implique necessariamente a proscrição da forma prévia (de novo, a questão da heterografia idolexical); finalmente, as possibilidades restritivas, já frequentemente postas em prática e em ficção, abertas por qualquer regulação governamental, ou “de cima para baixo” de forma geral, da linguagem. O que é necessário é que estas legislações não representem, tanto do ponto de vista do escritor como do revisor, mais que uma formalização do ponto de partida pragmático (pré-poético) no contacto com a língua: as regras, que só quando absolutamente rígidas alcançam a dignidade que lhes permite afirmarem-se enquanto tal, não são mais que horizontes reguladores e têm apenas essa função pedagógica cujo sucesso se manifesta, paradoxalmente, na capacidade de desconstrução da própria legislação.

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