Colegas,
Deixo aqui um pequeno texto que escrevi, que era, à partida, uma reflexão sobre a revisão de textos, e que acabou por ser, de forma mais geral, sobre a evolução da língua, seu uso e legislação.
O desafio central da revisão
textual ―
quando esta não se limita a corrigir o desvio acidental nem toma já a forma de
uma abordagem poética que chega a roçar a co-autoria ― revela-se no desconforto de ser toda a aproximação ao texto um confronto com o devir da língua, onde o
revisor trata, a cada intervenção, de definir o que é nela le propre et le sale. Esse desconforto terá, provavelmente, o seu
fundamento na familiaridade ― no sentido de algo que é
profundamente íntimo e constitutivo de toda a experiência e, em simultâneo,
inconspícuo e irrefletido ― que impele a tomar toda a novidade ou estranheza na
língua como bárbara, disparatada, desnecessária ou deselegante. Assim tendem,
com ou sem uma justificação coerentemente articulada, as distorções da
oralidade a ser vistas como degradações grosseiras, as assimilações de termos
alóctones como sintomas de um complexo de inferioridade nacional e as reformas
ortográficas como imposições dilacerantes sobre a vivência cultural, tanto
privada como coletiva. Verboses (verborreias?), lexifagias, logonomias:
transformações que são produtos do desenvolvimento “interno” de uma língua, da
sua relação com formas de falar o mundo que lhe são “externas” e de
estipulações institucionais, que serão, provavelmente, algo intermédio. Aí, nas
fronteiras entre a forma oficial, petrificada, da língua e as suas metamorfoses
constantes, deparamo-nos com problemas insolúveis de determinação daquilo que é
o uso legítimo ou ilegítimo dessa língua, problemas que tornam verdadeiramente
aliciante a perspetiva de uma heterografia individualista absoluta
(paragrafias): a legalidade de infinitos idioletos, feita de tensões e ajustes
permanentes, de novos problemas de tradução mas também de novas possibilidades
de expressão e compreensão. A “palavra original”, originária, ainda que seja
imaginário esse seu estatuto primordial, só pode ser pensada como berço de
multiplicidades ― o que nunca chega, no entanto, a implicar a
impossibilidade do diálogo. É que dois ramos nascidos de um mesmo tronco
central encontram sempre forma de se voltarem a cruzar; aquilo que não alcançam
é uma nova fusão que não deite a perder dimensões profundas de cada um e que
não deixe cair no esquecimento ou no ridículo da maquilhagem toda a sua
história de desenvolvimento individual. A metáfora vegetal esgota-se no momento
em que se reconhece que a evolução de duas formas da mesma língua não forma
sempre histórias paralelas e isoladas, mas dá-se frequentemente numa dinâmica
de oposição e conflito entre os seus falantes. Neste confronto, tornam-se
evidentes as dimensões contextual-sociológica e afetiva da palavra, que
ultrapassam o significado que lhe é atribuído pela cultura oficial; cargas afetivas
que se desenvolvem e alcançam a sua maior expressividade no discurso oral. O
desdém folclórico pela erudição pedante não se reduz a um qualquer mecanismo de
defesa perante algo que pertence a uma esfera superior; esse escárnio revela o
patético de uma linguagem desligada de toda a vivência. Uma literatura que
ignora a oralidade é uma literatura morta. O leitor que ouve a sua leitura
estranha mais um arcaísmo etimologicamente exato que o modismo naturalizado.
Inversamente, são as convenções do olho, e não do ouvido, que são violadas
(Krapp) quando as formas da oralidade surgem no papel ― como na formulação de
Kittler, “olhos e ouvidos [são] autónomos” perante a linguagem, ainda antes do
advento das tecnologias de reprodução em massa: estranheza perpétua da
sensorialidade orientada para a linguagem, com expectativas irreconciliáveis
que só podem encontrar ressonância na figura imaginária da linguagem monolítica
como totalidade rígida, sem brechas onde se abra a possibilidade da diferença.
Mas mesmo ignorando esta experiência fragmentada do sujeito falante, a
oficialização destas metamorfoses nas reformas da legislação linguística, a
“adaptação da grafia à oralidade” desperta sempre várias questões importantes:
a perda de profundidade histórica e ocultação do devir dos itens lexicais,
frequentemente com o propósito de os reabilitar para um uso não fundado na
vivência que lhes deu origem; a dificuldade em argumentar que a implementação
de uma nova grafia implique necessariamente a proscrição da forma prévia (de
novo, a questão da heterografia idolexical); finalmente, as possibilidades
restritivas, já frequentemente postas em prática e em ficção, abertas por
qualquer regulação governamental, ou “de cima para baixo” de forma geral, da
linguagem. O que é necessário é que estas legislações não representem, tanto do
ponto de vista do escritor como do revisor, mais que uma formalização do ponto
de partida pragmático (pré-poético) no contacto com a língua: as regras, que só
quando absolutamente rígidas alcançam a dignidade que lhes permite afirmarem-se
enquanto tal, não são mais que horizontes reguladores ― e têm apenas essa função
pedagógica cujo sucesso se manifesta, paradoxalmente, na capacidade de
desconstrução da própria legislação.
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