terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Sobre a minha experiência enquanto editor da revista Interact


Tenho em mãos, juntamente com dois colegas, a edição do próximo número da revista Interact. Trata-se de uma revista online do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem, integrado no Instituto de Comunicação da Nova, que se apresenta como plataforma para ensaios num formato menos convencional ― isto é, encorajando a experimentação artística e científica em torno de práticas e linguagens próprias à cultura digital. Assim, as participações podem incluir texto, imagem, vídeo, hiperligações, etc., e dividem-se em três categorias: Ensaio, a categoria mais convencional, predominantemente de texto puro, sem grandes exigências formais além da dimensão, que deve ser reduzida; Interfaces, onde se pretende criar um espaço para a crítica cultural focada na cultura digital, algo que tem ainda muito pouca expressão em Portugal; Laboratório, a categoria distintamente multimédia e experimental, orientada para a apresentação de trabalhos artísticos. Há, finalmente, uma secção para entrevistas e um espaço para o editorial.
Cada número da revista tem um tema central que orienta as propostas de publicação; os temas são propostos por voluntários dentro do centro de investigação que se queiram encarregar da edição da revista. Eu e os meus colegas propusemos em Janeiro, creio, o tema do Fragmento, e após um longo adiamento (devido ao prolongamento da edição anterior) sairá finalmente o primeiro ensaio a 10 de Fevereiro. As publicações são feitas semanalmente, pelo que a nossa condição de editores ainda se prolongará por vários meses.
As participações dividem-se entre convidados especiais e participantes espontâneos. Escolhemos nove convidados, alguns que conhecemos ao longo dos nossos percursos académicos, outros cujo trabalho nos pareceu interessante e apropriado; todos portugueses, todos professores ou investigadores académicos de diversas universidades, com a exceção de um artista/ensaísta mais independente. Destes, uma nunca respondeu; quatro mostraram-se interessados e até propuseram temas para os seus ensaios, mas acabaram por se afastar mais ou menos explicitamente; duas estão (esperamos nós) atualmente a escrever os ensaios; dois entregaram já as versões finais. A par disto, lançámos uma “call for papers”, que saiu duas vezes, devido ao adiamento que referi, e que seguiu para a mailing list do centro de investigação. Da primeira vez, o resultado foi muito pouco satisfatório: recebemos uma proposta brilhante, outra interessante mas muito mal redigida, e algumas outras bastante fracas, que acabaram por ser rejeitadas. Isto preocupou-nos, porque ficaríamos assim com um número insuficiente de participações (o mínimo é 8, o máximo 12). Da segunda vez, alguns meses depois, o cenário foi completamente diferente: muitas propostas, de natureza variadíssima, e com grande interesse ― o que pode ter sido o resultado de termos também publicado a segunda call no site Coffeepaste (assim sendo, será um sítio excelente para vocês publicarem os vossos anúncios, além de procurarem outros, como empregos ou workshops). Algumas propostas foram bastante bizarras: o mais surpreendente (parece uma piada) enviou-nos praticamente tudo o que escreveu e fotografou ao longo da vida, dizendo algo como: vejam lá se há aí alguma coisa que vos interesse. Mas o resultado da segunda chamada passou, subitamente, a significar que teríamos que escolher entre rejeitar propostas que queríamos publicar, ou aceitá-las, mas aumentar a edição para um número duplo; o que, além de prolongar o trabalho por mais seis meses, poderia “diluir” a edição, visto que seriam apenas 15 ou 16 publicações num espaço de tempo adaptado para um máximo de 24. Acabou por ser escolhida a segunda opção.
Curiosamente, apesar de termos tentado abrir o campo de possibilidades o máximo possível, indicando diversas dimensões teóricas e artísticas do fragmento, as propostas seguiram quase sempre em caminhos imprevistos para nós. Temos, então, uma grande variedade de abordagens ao nosso tema para publicar: ensaio filosófico no sentido mais estrito; crítica literária, crítica cinematográfica; crítica da temporalidade do regime industrial; poéticas fragmentárias; videoarte; imagem digital interativa. Restam-nos ainda 2 convites para fazer, os mais especiais de todos, a propósito das entrevistas: um autor português contemporâneo incontornável e um teórico de Media inglês de referência.
A tarefa final será, naturalmente, a de editar os trabalhos juntamente com os autores, revê-los e colocá-los no site, gerindo imagens, vídeo e hiperligações num equilíbrio entre aquilo que querem os autores e aquilo que é tecnicamente possível. As publicações estender-se-ão até Novembro.
Junto aqui a call for papers, para contexto ou para o caso de terem curiosidade:



Chamada para contribuições: Revista INTERACT #32 - Fragmento
Call for Papers: INTERACT #32 Fragmento
até 17 de Novembro de 2019


Organização: Eduardo Jordão, Henrique Fernandes e João Pereira de Matos
"A minha alma partiu-se como um vaso vazio/.../Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso" (Álvaro de Campos).

A questão do fragmento enquanto forma filosófica acompanha, desde os inícios do Romantismo Alemão, o pensamento da modernidade sobre si mesma. Seja nos registos reflexivos da ironia e da sagacidade que trazem à frente a disposição moderna (Schlegel), seja na demonstração das limitações de um sistema filosófico totalizante que permita aceder à realidade da natureza (Novalis). O fragmento orienta, desta forma, uma interpelação do intemporal problema do todo e da parte, permitindo problematizar, como prática, as suas (im)possibilidades de conciliação.
O fragmento, esse finito aberto a potencialidades infinitas, estabelece-se em miríades de modos de produção como uma semente que poderá fazer florescer novas dimensões da noção de razão. É precisamente como modo de produção que o fragmento agrupa inúmeras (contra)correntes da modernidade, desde a literatura (Gysin) ao ensaio filosófico (Benjamin, Bataille, Blanchot), passando pelas artes visuais (Dada, Cubismo, Surrealismo), a música (Cage) e mesmo o cinema. Simultaneamente, no campo estético da chamada pós-modernidade, a reunião de fragmentos numa manta de retalhos, nomeadamente na colagem ou na pintura (David Salle), ou a exploração de descontinuidades, bem exemplificada na arquitectura (Venturi, Stirling), são motifs recorrentes que se apresentam como expressão de um campo de confronto de multiplicidades com diferenças irredutíveis à totalidade harmoniosa idealizada pelo modernismo universalista (Lyotard).
Podemos até mesmo esboçar, colocando o fragmento como um nódulo que intercepta diversos sistemas de pensamento, uma constelação do contemporâneo. Uma analítica que vise: a experiência poética, mística; a sistematização da razão filosófica (micrologias de Benjamin e Adorno); a política (opondo a manta de retalhos da pluralidade cosmopolita ao consenso absoluto apenas imaginável nas massas como totalidade rígida, sem brechas); a temporalidade (Fredric Jameson e a fragmentação da experiência); o trabalho (a sua racionalização em múltiplas operações fragmentárias, cujo isolamento impede a concepção da totalidade do processo de produção); a vida-em-si (a questão da forma, “mais-forma” e “mais-que-forma” em Simmel); as imersivas e, paradoxalmente, fragmentárias potencialidades dos interfaces e do ciberespaço; a transformação do arquivo institucional clássico de centralização de fragmentos num espaço liso de controlo arquivial (Bragança de Miranda); ou a (re)conceptualização dos processos de subjetivação em torno de um campo relacional que se mostra essencial para perceber a medialidade contínua (Simondon).
A interseccionalidade relativa a diferentes sistemas de pensamento permite que o campo exploratório do fragmento faça explodir uma constelação dos nossos tempos, uma geometria experimental que nos parece lançar, talvez mais que nunca, para uma iniciativa política que resista, vectorializando-se, à total permeabilização dos espaços de controlo (Deleuze). Neste número (#32) da Interact buscamos, exatamente, vincar este caráter transformativo da questão do fragmento, abrindo portas a discussões e práticas centradas nas singulares propriedades modernas deste tema, como: o intervalo; a interrupção; o inacabado; o descontínuo; a abertura; a distância; a ruína; o indeterminado; a relação; o infinito. Encontramos aqui, porventura, um útil ponto de partida para explorar os abismos da sensibilidade,  encaminhando-nos para uma estética em-pedaços que aponte para a experiência da realidade material (Buck-Morss).
Apelamos à contribuição de investigadores, artistas e ensaístas com propostas que podem assumir formato de texto, registos fotográficos, vídeos (até ao limite de 10 minutos) ou outras formas de exploração dos novos media, respeitando a organização em secções descrita abaixo e sem esquecer que, por ser uma revista nativamente online, as peças devem ser mais curtas, mais ensaísticas, se não mesmo mais experimentais. Há todo o interesse em que seja dado bom uso às capacidades da própria World Wide Web, sendo de incentivar a existência de links, de imagens, de som, de interatividade.
A submissão da proposta deve incluir: título, resumo com 200 a 500 palavras e indicação da secção em que se enquadra, devendo ser feita até 17 de Novembro de 2019 para o e-mail dos coordenadores do número, e, se aceite para publicação, a respetiva peça, em formato editável, deverá ser entregue na sua versão definitiva até 31 de Dezembro de 2019.
Cabe à redação a palavra final relativamente à publicação ou rejeição das peças em causa, quer motivada pela qualidade quer pela eventual não adequação ao tema.

As melhores saudações,

Eduardo Jordão, Henrique Fernandes e João Pereira de Matos

SECÇÕES
ENSAIO: O ensaio é uma secção-chave do projeto da Interact, que visa contribuir para um fortalecimento da presença do pensamento (em particular do pensamento português) nas redes de informação. Os textos para esta secção devem ter entre 4 a 5 páginas (10000 a 12500 caracteres), com uma utilização reduzida ou moderada de notas de rodapé e itálicos. Desaconselha-se também: bolds, cabeçalhos e diferenciamento de fontes por tamanhos de letra.
INTERFACES: É objetivo desta secção afrontar duas lacunas importantes da atividade contemporânea da crítica no espaço da cultura portuguesa: a presença muito insuficiente da crítica cultural especializada na Internet, aí se incluindo o comentário e a recensão, e a falta de atenção da crítica a temas e objetos provenientes da cibercultura. Têm também aqui lugar artigos de caráter mais curto e mais experimental. Os textos para esta secção devem, também, ter entre 4 a 5 páginas (10000 a 12500 caracteres), privilegiando-se o uso de elementos multimedia e ligações, e desaconselhando-se o recurso a notas de rodapé, bolds, cabeçalhos, diferenciamento de fontes por tamanhos de letra e itálicos.
LABORATÓRIO: Esta secção, concebida como mostra de trabalhos artísticos, é inteiramente livre no que respeita aos meios de expressão a utilizar (escrita, grafismo, vídeo, imagem digital, som, …), aos temas e aos géneros, incentivando-se a experimentação das características próprias das tecnologias digitais. As propostas aqui apresentadas são da inteira responsabilidade dos respetivos autores, embora a sua realização e implementação online possa resultar do trabalho conjunto com a equipa da Interact.
ENTREVISTA: A presença da cultura na Internet ao longo dos últimos anos tem mostrado que a entrevista é um dos géneros mais bem sucedidos na divulgação e no debate de ideias e na expressão do estilo próprio que faz de alguém um autor. Noutros meios, a entrevista é frequentemente uma paródia de si própria pela escrita, uma exibição menor de uma oralidade de improviso (como na rádio ou na televisão) ou um género adulterado pelo rewriting jornalístico. A natureza dos instrumentos de comunicação próprios do online oferece hoje a possibilidade de praticar a entrevista sob formas diversas e extremamente flexíveis, mesmo à distância, permitindo contribuir para a divulgação, junto de um público mais alargado, de autores de qualidade nas áreas contemporâneas do pensamento, da cultura e da arte.

1 comentário:

  1. Interessante. Há agora demasiados 'call for papers' e as pessoas talvez escolham os que lhes dão mais vantagem - pontos etc., não sei. Parágrafos (e espaçamento) talvez ajudem. Prazos-contando-com-atrasos também. O problema aqui, com autores, é curiosamente parecido com o dos leitores: como atrair a atenção e a intenção (o desejo, o apetite) desta gente?

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