Edição (n. f.):
impressão e publicação de uma obra; (figurado) alteração e/ou combinação de
diferentes elementos ou partes de um conjunto, de modo a alcançar determinado
fim.
Este é o verbete da palavra “edição”
presente no dicionário. Ao analisarmos o conceito primordial a partir de um
panorama estritamente imparcial, é-nos possível corroborar esta definição? Será
que “edição” se limita a envolver o processo de impressão e publicação de uma obra
ou será que a publicação de uma obra requere edição por si só? Creio que ambas as
ações se encontram plenamente interligadas e que não podem ser desassociadas ou
desvinculadas uma da outra.
Todavia, se tudo se torna num
problema de semântica e de interpretação, então como saber em que consiste o
trabalho de um editor? Qual o limite de edição que este pode aplicar? Quando é
que deixa de ser um trabalho de edição e passa a ser um trabalho de reescrita?
Lish é um exemplo repreensível ao
nível máximo de como um editor pode (inter)ferir. Graças ao seu génio, feriu
pouco, contudo, interferiu demasiado. A meu ver, Lish tornou-se um
ghost writer ou até mesmo um coautor de Carver. Se Carver ficou
reconhecido pelo “seu” estilo de escrita cru e bruto, nesse caso o mérito
pertence a Lish. Desta forma, o que se tornou a identidade de Carver nada é
mais do que a identidade de Lish com o seu nome.
Um livro é suposto pertencer a
quem o escreveu, a quem o idealizou, a quem o concebeu. Vejamos isto numa
associação possivelmente descabida, no entanto, aplicável. O autor dá luz à sua
obra, como uma mulher dá luz à sua criança. A diferença persiste somente no
autor precisar apenas de si mesmo e a mulher de um homem. Deste modo, a mulher dá à
luz e a sua criança vive sempre com ela; adquire-lhe os hábitos e
a fisionomia, segue a sua educação, idolatra a mãe. Todavia, por muito que a
criança esteja só com a mãe, os traços do homem continuarão visíveis na sua
forma física, metade do seu código genético continuará a provir dele. Ora, foi isto
o que Lish e Craver fizeram juntos – trouxeram uma “criança” ao mundo. Embora a
obra, na sua essência, pertencesse a Carver, Lish roubou a componente orgânica
que o torna o autor por inteiro. Na verdade, aquela não é mais a sua
obra. Pelo menos não somente sua. Agora também pertence a Lish.
Podemos argumentar sobre a
decência ou falta desta em Lish, mas a verdade é que quem manda é o autor. Está
tudo nas suas mãos. Todavia, a distinção que se faz entre os autores provém da
sua ética, valores e moralidade. O que é mais importante para o autor? A fama
ao perder a sua essência ou manter o seu caráter por inteiro e arriscar-se a
ser mais um zé-ninguém? Como tudo na vida, esta dúvida é meramente uma questão
de prioridades e, tal como acontece com qualquer questão colocada pela vida, a
resposta muda de indivíduo para indivíduo.
Pessoalmente, como autora e como
leitora, é-me impensável ver esta natureza contaminada. Um autor tem um vínculo
espiritual e nutre sempre uma espécie de amor pela sua obra. Cada escritor tem
um estilo próprio, desde a colocação da vírgula à forma como sente e faz sentir.
Essa caraterística própria, individual e singular deve ser sempre preservada. Afinal,
se o objetivo da edição for reformular o livro por inteiro, será que vale a
pena publicar esse livro de todo? E, se a resposta for afirmativa, então o
livro não deve ser visto como uma coautoria?
Creio que a resposta a este
problema se resume ao conceito que cada indivíduo escolhe associar ao termo “edição”
- a simples impressão e publicação da
obra ou toda a alteração/combinação de modo a alcançar um determinado fim? Se a
escolha recair nesta última opção, então qual é o fim a alcançar – encher a
barriga ou arriscar-se a petiscar?
Na minha opinião, a resposta
certa está no que te fizer dormir melhor – a consciência tranquila ou o colchão
de penas.
Márcia Filipa
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