sábado, 12 de outubro de 2019

Edição – o conceito por definir



Edição (n. f.): impressão e publicação de uma obra; (figurado) alteração e/ou combinação de diferentes elementos ou partes de um conjunto, de modo a alcançar determinado fim.

Este é o verbete da palavra “edição” presente no dicionário. Ao analisarmos o conceito primordial a partir de um panorama estritamente imparcial, é-nos possível corroborar esta definição? Será que “edição” se limita a envolver o processo de impressão e publicação de uma obra ou será que a publicação de uma obra requere edição por si só? Creio que ambas as ações se encontram plenamente interligadas e que não podem ser desassociadas ou desvinculadas uma da outra.
Todavia, se tudo se torna num problema de semântica e de interpretação, então como saber em que consiste o trabalho de um editor? Qual o limite de edição que este pode aplicar? Quando é que deixa de ser um trabalho de edição e passa a ser um trabalho de reescrita?
Lish é um exemplo repreensível ao nível máximo de como um editor pode (inter)ferir. Graças ao seu génio, feriu pouco, contudo, interferiu demasiado. A meu ver, Lish tornou-se um ghost writer ou até mesmo um coautor de Carver. Se Carver ficou reconhecido pelo “seu” estilo de escrita cru e bruto, nesse caso o mérito pertence a Lish. Desta forma, o que se tornou a identidade de Carver nada é mais do que a identidade de Lish com o seu nome.
Um livro é suposto pertencer a quem o escreveu, a quem o idealizou, a quem o concebeu. Vejamos isto numa associação possivelmente descabida, no entanto, aplicável. O autor dá luz à sua obra, como uma mulher dá luz à sua criança. A diferença persiste somente no autor precisar apenas de si mesmo e a mulher de um homem. Deste modo, a mulher dá à luz e a sua criança vive sempre com ela; adquire-lhe os hábitos e a fisionomia, segue a sua educação, idolatra a mãe. Todavia, por muito que a criança esteja só com a mãe, os traços do homem continuarão visíveis na sua forma física, metade do seu código genético continuará a provir dele. Ora, foi isto o que Lish e Craver fizeram juntos – trouxeram uma “criança” ao mundo. Embora a obra, na sua essência, pertencesse a Carver, Lish roubou a componente orgânica que o torna o autor por inteiro. Na verdade, aquela não é mais a sua obra. Pelo menos não somente sua. Agora também pertence a Lish.
Podemos argumentar sobre a decência ou falta desta em Lish, mas a verdade é que quem manda é o autor. Está tudo nas suas mãos. Todavia, a distinção que se faz entre os autores provém da sua ética, valores e moralidade. O que é mais importante para o autor? A fama ao perder a sua essência ou manter o seu caráter por inteiro e arriscar-se a ser mais um zé-ninguém? Como tudo na vida, esta dúvida é meramente uma questão de prioridades e, tal como acontece com qualquer questão colocada pela vida, a resposta muda de indivíduo para indivíduo.
Pessoalmente, como autora e como leitora, é-me impensável ver esta natureza contaminada. Um autor tem um vínculo espiritual e nutre sempre uma espécie de amor pela sua obra. Cada escritor tem um estilo próprio, desde a colocação da vírgula à forma como sente e faz sentir. Essa caraterística própria, individual e singular deve ser sempre preservada. Afinal, se o objetivo da edição for reformular o livro por inteiro, será que vale a pena publicar esse livro de todo? E, se a resposta for afirmativa, então o livro não deve ser visto como uma coautoria?
Creio que a resposta a este problema se resume ao conceito que cada indivíduo escolhe associar ao termo “edição” -  a simples impressão e publicação da obra ou toda a alteração/combinação de modo a alcançar um determinado fim? Se a escolha recair nesta última opção, então qual é o fim a alcançar – encher a barriga ou arriscar-se a petiscar?
Na minha opinião, a resposta certa está no que te fizer dormir melhor – a consciência tranquila ou o colchão de penas.

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Márcia Filipa

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