terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Notas finais

Aqui estão as notas finais. Só as lanço definitivas na próxima semana. Qualquer dúvida liguem e bom ano.


Amanda de Castro Vital Maciel – 17
Ana Paula dos Reis Martins – 17
Ana Raquel Rocha Lopes – 16
Andréa Fonseca - 17
Bárbara Gonçalves Azevedo – 17
Bruna Daniela Braga Vaz de Sousa – 16
Cláudia Ribeiro Fortuna – 16
Guo Junchi – 15
Henrique da Mata Fernandes – 17
Hou Yuqing – 15
Inês Catarina Lomba da Silva – 17 
Inês Filipa Rebelo do Carmo – 17
Joana Isabel Félix Honrado -– 17
Leonardo Cardoso Rachid de Lacerda – 18
Luísa Moreira Vianna Moura – 17
Márcia Filipa Mendes da Silva Francisco - 17
Margarida Azevedo – 18
Maria Margarida Félix Fontes – 17
Mônica Reis Pinto Semêdo – 17
Nelson Manuel Alves e Silva – 15
Rafaela Vicente Gaspar – 16
Renata Katz – 16
ROSANE NUNES DE OLIVEIRA PESSANHA – 19
Silvia Regina Baisch Domingues – 18
Vanda Isabel Évora Pinto – 16

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A bibliodiversidade é uma preguiça do sistema?


A bibliodiversidade é um tópico complicado, uma vez que possui diferentes pontos de vista opostos e, por sua vez, aceitáveis. Do meu ponto de vista, a bibliodiversidade pode ser considerada fruto da preguiça do sistema. Cada vez existem mais pessoas a escrever e a querer publicar os seus livros e cada vez existem menos pessoas a ler e a comprar livros. Desta forma, é possível considerar que as editoras cada vez recebem mais manuscritos, no entanto, recebem cada vez menos dinheiro para os publicar.
Ora, este fenómeno instiga a autopublicação — processo que permite aos jovens autores concretizarem o seu sonho e às editoras ganharem dinheiro sem fazerem grande coisa a não ser colocar o seu nome nesses livros e permitir a distribuição em grandes superfícies onde permanecerão ocultados na enchente de livros disponíveis ou na caixa da qual nunca sairão sequer. A autopublicação cria um problema da bibliodiversidade excessiva e desproporcionada, uma vez que já não ocorre uma seleção criteriosa dos livros a publicar. Todos são autores e todos têm livros publicados.
Temos romances e thrillers invisíveis que pouco vendem e temos livros de conversas de Whatsapp de youtubers, bem como livros intitulados Tudo o que os homens sabem sobre as mulheres com 128 páginas em branco a vender centenas e até milhares. Agora pergunto, serão esses livros necessários, produtivos, geniais? Talvez, afinal de contas, satisfazem a mente de jovens ocos e criticam a dificuldade que os homens têm em perceber as mulheres como se o problema fosse inteiramente do sexo feminino.
Talvez o problema consista apenas em satisfazer a mente das pessoas que procuram a Grande Literatura. Passo horas numa livraria por duas razões: há demasiado por onde escolher e, simultaneamente, há muito pouco que me agrade. Às vezes, os milhares de livros disponíveis dão-me vontade de fugir dali. É demasiado por onde escolher e acredito piedosamente que uma seleção criteriosa dos livros a publicar só iria beneficiar o mercado literário. Afinal de contas, é mais fácil conseguir vender um livro no meio de cem do que um livro no meio de mil.
Contudo, entendo que as dificuldades económicas levem os vendedores a pensar que é melhor ter tudo do que não ter nada. Não é uma caraterística que apenas se aplica ao mercado editorial, mas a qualquer negócio em dificuldade. Existe tanta concorrência e tanto produto que as pessoas se perdem entre o querer tudo e o não ter nada. E, nós, como comerciantes, só queremos agradar o público, porque, por muito que queiramos publicar arte, ainda é necessário ganhar a vida de alguma forma.
O pensamento mudou de “Isto é o que gostamos, é isto que vamos dar aos leitores” para “Será que eles preferem branco ou preto? Talvez seja melhor pôr em todas as cores”. A bibliodiversidade é uma faca de dois gumes, uma vez que é o que permite ao mercado literário ganhar dinheiro e, ao mesmo tempo, perdê-lo.


Márcia Filipa

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O livro: peça da Bershka ou obra de museu?


Os livros serão sempre parte integrante de um lar, quer para servir o seu verdadeiro propósito, quer para acender a fogueira e aquecer os seus ocupantes. Todavia, creio que os amantes literários, nomeadamente dos livros em papel, nunca entrarão em extinção, embora os livros digitais continuem a ganhar um relevo substancial nos próximos anos e, possivelmente, séculos.
Os livros, como qualquer objeto, podem desempenhar vários papéis. Podem ocupar as estantes num papel meramente decorativo e ilusão de aparente erudição; podem desempenhar a sua verdadeira função ao ser lidos e folheados; podem ser guardados ou revendidos; podem literalmente ir parar à fogueira num dia em que haja pouca lenha ou falta de jornal.
Ninguém sabe o que o futuro reserva ao livro, no entanto, existem dois polos de opinião completamente discordantes e válidos: o livro continuará a sua expansão descomedida ou transformar-se-á numa raridade e possível objeto de coleção.
Se a produção literária continuar a um ritmo alucinante, será cada vez mais difícil ver o livro como uma peça de arte em detrimento de um produto facilmente consumível e com uma enorme variedade disponível, tão básico e comum como uma peça de roupa da Bershka e, como todos sabem, uma peça de roupa da Bershka não traz prestígio a ninguém — no máximo, acontece o oposto.
Se os leitores optarem cada vez mais pela leitura digital, o livro perderá o seu conceito original e as peças físicas tornar-se-ão raridades e objetos de prestígio, uma vez que ter um livro em casa poderá ser algo obsoleto e, em simultâneo, magnífico, como uma peça de arte perdida num museu. Em ambos os casos, a sua integridade está salvaguardada e a sua permanência nas nossas casas também — quer como objeto descartável, quer como objeto de prestígio.

Márcia Filipa

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Frequências

Em princípio, terei as frequências na quinta.

Tragam lista de compras. Gostava que o Henrique falasse, ao vivo, da sua experiência actual.

Sobre a minha experiência enquanto editor da revista Interact


Tenho em mãos, juntamente com dois colegas, a edição do próximo número da revista Interact. Trata-se de uma revista online do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem, integrado no Instituto de Comunicação da Nova, que se apresenta como plataforma para ensaios num formato menos convencional ― isto é, encorajando a experimentação artística e científica em torno de práticas e linguagens próprias à cultura digital. Assim, as participações podem incluir texto, imagem, vídeo, hiperligações, etc., e dividem-se em três categorias: Ensaio, a categoria mais convencional, predominantemente de texto puro, sem grandes exigências formais além da dimensão, que deve ser reduzida; Interfaces, onde se pretende criar um espaço para a crítica cultural focada na cultura digital, algo que tem ainda muito pouca expressão em Portugal; Laboratório, a categoria distintamente multimédia e experimental, orientada para a apresentação de trabalhos artísticos. Há, finalmente, uma secção para entrevistas e um espaço para o editorial.
Cada número da revista tem um tema central que orienta as propostas de publicação; os temas são propostos por voluntários dentro do centro de investigação que se queiram encarregar da edição da revista. Eu e os meus colegas propusemos em Janeiro, creio, o tema do Fragmento, e após um longo adiamento (devido ao prolongamento da edição anterior) sairá finalmente o primeiro ensaio a 10 de Fevereiro. As publicações são feitas semanalmente, pelo que a nossa condição de editores ainda se prolongará por vários meses.
As participações dividem-se entre convidados especiais e participantes espontâneos. Escolhemos nove convidados, alguns que conhecemos ao longo dos nossos percursos académicos, outros cujo trabalho nos pareceu interessante e apropriado; todos portugueses, todos professores ou investigadores académicos de diversas universidades, com a exceção de um artista/ensaísta mais independente. Destes, uma nunca respondeu; quatro mostraram-se interessados e até propuseram temas para os seus ensaios, mas acabaram por se afastar mais ou menos explicitamente; duas estão (esperamos nós) atualmente a escrever os ensaios; dois entregaram já as versões finais. A par disto, lançámos uma “call for papers”, que saiu duas vezes, devido ao adiamento que referi, e que seguiu para a mailing list do centro de investigação. Da primeira vez, o resultado foi muito pouco satisfatório: recebemos uma proposta brilhante, outra interessante mas muito mal redigida, e algumas outras bastante fracas, que acabaram por ser rejeitadas. Isto preocupou-nos, porque ficaríamos assim com um número insuficiente de participações (o mínimo é 8, o máximo 12). Da segunda vez, alguns meses depois, o cenário foi completamente diferente: muitas propostas, de natureza variadíssima, e com grande interesse ― o que pode ter sido o resultado de termos também publicado a segunda call no site Coffeepaste (assim sendo, será um sítio excelente para vocês publicarem os vossos anúncios, além de procurarem outros, como empregos ou workshops). Algumas propostas foram bastante bizarras: o mais surpreendente (parece uma piada) enviou-nos praticamente tudo o que escreveu e fotografou ao longo da vida, dizendo algo como: vejam lá se há aí alguma coisa que vos interesse. Mas o resultado da segunda chamada passou, subitamente, a significar que teríamos que escolher entre rejeitar propostas que queríamos publicar, ou aceitá-las, mas aumentar a edição para um número duplo; o que, além de prolongar o trabalho por mais seis meses, poderia “diluir” a edição, visto que seriam apenas 15 ou 16 publicações num espaço de tempo adaptado para um máximo de 24. Acabou por ser escolhida a segunda opção.
Curiosamente, apesar de termos tentado abrir o campo de possibilidades o máximo possível, indicando diversas dimensões teóricas e artísticas do fragmento, as propostas seguiram quase sempre em caminhos imprevistos para nós. Temos, então, uma grande variedade de abordagens ao nosso tema para publicar: ensaio filosófico no sentido mais estrito; crítica literária, crítica cinematográfica; crítica da temporalidade do regime industrial; poéticas fragmentárias; videoarte; imagem digital interativa. Restam-nos ainda 2 convites para fazer, os mais especiais de todos, a propósito das entrevistas: um autor português contemporâneo incontornável e um teórico de Media inglês de referência.
A tarefa final será, naturalmente, a de editar os trabalhos juntamente com os autores, revê-los e colocá-los no site, gerindo imagens, vídeo e hiperligações num equilíbrio entre aquilo que querem os autores e aquilo que é tecnicamente possível. As publicações estender-se-ão até Novembro.
Junto aqui a call for papers, para contexto ou para o caso de terem curiosidade:



Chamada para contribuições: Revista INTERACT #32 - Fragmento
Call for Papers: INTERACT #32 Fragmento
até 17 de Novembro de 2019


Organização: Eduardo Jordão, Henrique Fernandes e João Pereira de Matos
"A minha alma partiu-se como um vaso vazio/.../Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso" (Álvaro de Campos).

A questão do fragmento enquanto forma filosófica acompanha, desde os inícios do Romantismo Alemão, o pensamento da modernidade sobre si mesma. Seja nos registos reflexivos da ironia e da sagacidade que trazem à frente a disposição moderna (Schlegel), seja na demonstração das limitações de um sistema filosófico totalizante que permita aceder à realidade da natureza (Novalis). O fragmento orienta, desta forma, uma interpelação do intemporal problema do todo e da parte, permitindo problematizar, como prática, as suas (im)possibilidades de conciliação.
O fragmento, esse finito aberto a potencialidades infinitas, estabelece-se em miríades de modos de produção como uma semente que poderá fazer florescer novas dimensões da noção de razão. É precisamente como modo de produção que o fragmento agrupa inúmeras (contra)correntes da modernidade, desde a literatura (Gysin) ao ensaio filosófico (Benjamin, Bataille, Blanchot), passando pelas artes visuais (Dada, Cubismo, Surrealismo), a música (Cage) e mesmo o cinema. Simultaneamente, no campo estético da chamada pós-modernidade, a reunião de fragmentos numa manta de retalhos, nomeadamente na colagem ou na pintura (David Salle), ou a exploração de descontinuidades, bem exemplificada na arquitectura (Venturi, Stirling), são motifs recorrentes que se apresentam como expressão de um campo de confronto de multiplicidades com diferenças irredutíveis à totalidade harmoniosa idealizada pelo modernismo universalista (Lyotard).
Podemos até mesmo esboçar, colocando o fragmento como um nódulo que intercepta diversos sistemas de pensamento, uma constelação do contemporâneo. Uma analítica que vise: a experiência poética, mística; a sistematização da razão filosófica (micrologias de Benjamin e Adorno); a política (opondo a manta de retalhos da pluralidade cosmopolita ao consenso absoluto apenas imaginável nas massas como totalidade rígida, sem brechas); a temporalidade (Fredric Jameson e a fragmentação da experiência); o trabalho (a sua racionalização em múltiplas operações fragmentárias, cujo isolamento impede a concepção da totalidade do processo de produção); a vida-em-si (a questão da forma, “mais-forma” e “mais-que-forma” em Simmel); as imersivas e, paradoxalmente, fragmentárias potencialidades dos interfaces e do ciberespaço; a transformação do arquivo institucional clássico de centralização de fragmentos num espaço liso de controlo arquivial (Bragança de Miranda); ou a (re)conceptualização dos processos de subjetivação em torno de um campo relacional que se mostra essencial para perceber a medialidade contínua (Simondon).
A interseccionalidade relativa a diferentes sistemas de pensamento permite que o campo exploratório do fragmento faça explodir uma constelação dos nossos tempos, uma geometria experimental que nos parece lançar, talvez mais que nunca, para uma iniciativa política que resista, vectorializando-se, à total permeabilização dos espaços de controlo (Deleuze). Neste número (#32) da Interact buscamos, exatamente, vincar este caráter transformativo da questão do fragmento, abrindo portas a discussões e práticas centradas nas singulares propriedades modernas deste tema, como: o intervalo; a interrupção; o inacabado; o descontínuo; a abertura; a distância; a ruína; o indeterminado; a relação; o infinito. Encontramos aqui, porventura, um útil ponto de partida para explorar os abismos da sensibilidade,  encaminhando-nos para uma estética em-pedaços que aponte para a experiência da realidade material (Buck-Morss).
Apelamos à contribuição de investigadores, artistas e ensaístas com propostas que podem assumir formato de texto, registos fotográficos, vídeos (até ao limite de 10 minutos) ou outras formas de exploração dos novos media, respeitando a organização em secções descrita abaixo e sem esquecer que, por ser uma revista nativamente online, as peças devem ser mais curtas, mais ensaísticas, se não mesmo mais experimentais. Há todo o interesse em que seja dado bom uso às capacidades da própria World Wide Web, sendo de incentivar a existência de links, de imagens, de som, de interatividade.
A submissão da proposta deve incluir: título, resumo com 200 a 500 palavras e indicação da secção em que se enquadra, devendo ser feita até 17 de Novembro de 2019 para o e-mail dos coordenadores do número, e, se aceite para publicação, a respetiva peça, em formato editável, deverá ser entregue na sua versão definitiva até 31 de Dezembro de 2019.
Cabe à redação a palavra final relativamente à publicação ou rejeição das peças em causa, quer motivada pela qualidade quer pela eventual não adequação ao tema.

As melhores saudações,

Eduardo Jordão, Henrique Fernandes e João Pereira de Matos

SECÇÕES
ENSAIO: O ensaio é uma secção-chave do projeto da Interact, que visa contribuir para um fortalecimento da presença do pensamento (em particular do pensamento português) nas redes de informação. Os textos para esta secção devem ter entre 4 a 5 páginas (10000 a 12500 caracteres), com uma utilização reduzida ou moderada de notas de rodapé e itálicos. Desaconselha-se também: bolds, cabeçalhos e diferenciamento de fontes por tamanhos de letra.
INTERFACES: É objetivo desta secção afrontar duas lacunas importantes da atividade contemporânea da crítica no espaço da cultura portuguesa: a presença muito insuficiente da crítica cultural especializada na Internet, aí se incluindo o comentário e a recensão, e a falta de atenção da crítica a temas e objetos provenientes da cibercultura. Têm também aqui lugar artigos de caráter mais curto e mais experimental. Os textos para esta secção devem, também, ter entre 4 a 5 páginas (10000 a 12500 caracteres), privilegiando-se o uso de elementos multimedia e ligações, e desaconselhando-se o recurso a notas de rodapé, bolds, cabeçalhos, diferenciamento de fontes por tamanhos de letra e itálicos.
LABORATÓRIO: Esta secção, concebida como mostra de trabalhos artísticos, é inteiramente livre no que respeita aos meios de expressão a utilizar (escrita, grafismo, vídeo, imagem digital, som, …), aos temas e aos géneros, incentivando-se a experimentação das características próprias das tecnologias digitais. As propostas aqui apresentadas são da inteira responsabilidade dos respetivos autores, embora a sua realização e implementação online possa resultar do trabalho conjunto com a equipa da Interact.
ENTREVISTA: A presença da cultura na Internet ao longo dos últimos anos tem mostrado que a entrevista é um dos géneros mais bem sucedidos na divulgação e no debate de ideias e na expressão do estilo próprio que faz de alguém um autor. Noutros meios, a entrevista é frequentemente uma paródia de si própria pela escrita, uma exibição menor de uma oralidade de improviso (como na rádio ou na televisão) ou um género adulterado pelo rewriting jornalístico. A natureza dos instrumentos de comunicação próprios do online oferece hoje a possibilidade de praticar a entrevista sob formas diversas e extremamente flexíveis, mesmo à distância, permitindo contribuir para a divulgação, junto de um público mais alargado, de autores de qualidade nas áreas contemporâneas do pensamento, da cultura e da arte.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Revisão de textos e transformações da língua


Colegas,

Deixo aqui um pequeno texto que escrevi, que era, à partida, uma reflexão sobre a revisão de textos, e que acabou por ser, de forma mais geral, sobre a evolução da língua, seu uso e legislação.


O desafio central da revisão textual quando esta não se limita a corrigir o desvio acidental nem toma já a forma de uma abordagem poética que chega a roçar a co-autoria revela-se no desconforto de ser toda a aproximação ao texto um confronto com o devir da língua, onde o revisor trata, a cada intervenção, de definir o que é nela le propre et le sale. Esse desconforto terá, provavelmente, o seu fundamento na familiaridade no sentido de algo que é profundamente íntimo e constitutivo de toda a experiência e, em simultâneo, inconspícuo e irrefletido que impele a tomar toda a novidade ou estranheza na língua como bárbara, disparatada, desnecessária ou deselegante. Assim tendem, com ou sem uma justificação coerentemente articulada, as distorções da oralidade a ser vistas como degradações grosseiras, as assimilações de termos alóctones como sintomas de um complexo de inferioridade nacional e as reformas ortográficas como imposições dilacerantes sobre a vivência cultural, tanto privada como coletiva. Verboses (verborreias?), lexifagias, logonomias: transformações que são produtos do desenvolvimento “interno” de uma língua, da sua relação com formas de falar o mundo que lhe são “externas” e de estipulações institucionais, que serão, provavelmente, algo intermédio. Aí, nas fronteiras entre a forma oficial, petrificada, da língua e as suas metamorfoses constantes, deparamo-nos com problemas insolúveis de determinação daquilo que é o uso legítimo ou ilegítimo dessa língua, problemas que tornam verdadeiramente aliciante a perspetiva de uma heterografia individualista absoluta (paragrafias): a legalidade de infinitos idioletos, feita de tensões e ajustes permanentes, de novos problemas de tradução mas também de novas possibilidades de expressão e compreensão. A “palavra original”, originária, ainda que seja imaginário esse seu estatuto primordial, só pode ser pensada como berço de multiplicidades o que nunca chega, no entanto, a implicar a impossibilidade do diálogo. É que dois ramos nascidos de um mesmo tronco central encontram sempre forma de se voltarem a cruzar; aquilo que não alcançam é uma nova fusão que não deite a perder dimensões profundas de cada um e que não deixe cair no esquecimento ou no ridículo da maquilhagem toda a sua história de desenvolvimento individual. A metáfora vegetal esgota-se no momento em que se reconhece que a evolução de duas formas da mesma língua não forma sempre histórias paralelas e isoladas, mas dá-se frequentemente numa dinâmica de oposição e conflito entre os seus falantes. Neste confronto, tornam-se evidentes as dimensões contextual-sociológica e afetiva da palavra, que ultrapassam o significado que lhe é atribuído pela cultura oficial; cargas afetivas que se desenvolvem e alcançam a sua maior expressividade no discurso oral. O desdém folclórico pela erudição pedante não se reduz a um qualquer mecanismo de defesa perante algo que pertence a uma esfera superior; esse escárnio revela o patético de uma linguagem desligada de toda a vivência. Uma literatura que ignora a oralidade é uma literatura morta. O leitor que ouve a sua leitura estranha mais um arcaísmo etimologicamente exato que o modismo naturalizado. Inversamente, são as convenções do olho, e não do ouvido, que são violadas (Krapp) quando as formas da oralidade surgem no papel como na formulação de Kittler, “olhos e ouvidos [são] autónomos” perante a linguagem, ainda antes do advento das tecnologias de reprodução em massa: estranheza perpétua da sensorialidade orientada para a linguagem, com expectativas irreconciliáveis que só podem encontrar ressonância na figura imaginária da linguagem monolítica como totalidade rígida, sem brechas onde se abra a possibilidade da diferença. Mas mesmo ignorando esta experiência fragmentada do sujeito falante, a oficialização destas metamorfoses nas reformas da legislação linguística, a “adaptação da grafia à oralidade” desperta sempre várias questões importantes: a perda de profundidade histórica e ocultação do devir dos itens lexicais, frequentemente com o propósito de os reabilitar para um uso não fundado na vivência que lhes deu origem; a dificuldade em argumentar que a implementação de uma nova grafia implique necessariamente a proscrição da forma prévia (de novo, a questão da heterografia idolexical); finalmente, as possibilidades restritivas, já frequentemente postas em prática e em ficção, abertas por qualquer regulação governamental, ou “de cima para baixo” de forma geral, da linguagem. O que é necessário é que estas legislações não representem, tanto do ponto de vista do escritor como do revisor, mais que uma formalização do ponto de partida pragmático (pré-poético) no contacto com a língua: as regras, que só quando absolutamente rígidas alcançam a dignidade que lhes permite afirmarem-se enquanto tal, não são mais que horizontes reguladores e têm apenas essa função pedagógica cujo sucesso se manifesta, paradoxalmente, na capacidade de desconstrução da própria legislação.

Uma mensagem de Ann Wintour

As 10 regras (ah, a magia dos números em tornar tudo lógico, atraente e científico!) aqui.

E o preâmbulo à sua masterclass aqui. Gosto do slogan "You have to decide if you are a follower or a leader". De facto, é importante (para além de elementar bom senso), que é o que ela partilha, pelo menos em público, saber o que somos e tentar conciliar o que gostamos de fazer com o que temos potencial competência para fazer.
Sun Tzu e Sócrates já o disseram de modo parecido, há uns anitos atrás. Claro, é como ouvir um jogador dizer como faz as suas fintas.

Cinco capas

Abaixo apresento cinco livros cujas capas se destacaram para mim, por bons e maus motivos.  

A primeira é a deste livro do Adam Kay, Twas the nightshift before Christmas. Acho uma capa muito engraçada; o saco em forma de meia de Natal, com o sangue a dar o apropriado tom de vermelho, junto com o título (que acho brilhante, pela sua simplicidade), diz-nos imediatamente três coisas: que a narrativa se passa na véspera de Natal, no hospital, e que irá ter uma boa componente de humor. Embora prefira habitualmente capas mais simples, mais clean, esta chamou-me imediatamente a atenção e levou-me a ir ver a contracapa do livro e a folheá-lo  e, consequentemente, a comprá-lo. Por estes motivos, acho que esta é definitivamente uma boa capa. 


A seguinte capa é muito inteligente, por ser extremamente simples mas eficaz em igual medida. Em primeiro lugar, chama a atenção, porque não estamos habituados a ver uma capa toda branca e temos de nos chegar perto para perceber o que nela está escrito; em segundo lugar, porque a própria capa transmite a principal característica dos introvertidos, as pessoas quiet, de quem o livro pretende falar: a de conseguirem passar despercebidos, quase se confundindo com o "fundo". Assim, é uma capa que, não sendo única, é bastante original e resulta.




Segue-se agora uma capa de que não gostei  e que me deixou, até, um pouco aborrecida. A capa desta edição de A morte de Ivan Ilitch tem o problema de ter como elemento central –  como único elemento, na realidade  um objeto que nada tem que ver com a história (talvez tenha, mas apenas num plano muito metafísico). Este elemento, a navalha, é tão forte que acaba por condicionar toda a leitura, sobretudo por à primeira vista estabelecer uma relação muito óbvia com o título. Assim, o leitor cria logo à partida a expectativa de que a navalha irá desempenhar um papel na anunciada morte de Ivan Ilitch, e inicia a leitura interpretando a narrativa de acordo com aquilo que julga saber, e na verdade não sabe.
Sendo verdade que a capa não nos deve indicar toda o enredo do livro, e muito menos o seu final, para mim é verdade também que não deve apontar para uma intriga ou um final que não se verifica de todo. Nessa medida, acho esta uma má capa por ser totalmente desadequada em relação à história –  parece até um dos casos em que a capa é desenhada sem que o seu autor tenha lido primeiro o livro. 


Esta é uma das minhas capas preferidas. É muito elegante, abraça o título de uma forma muito natural e estabelece com ele uma relação direta mas não demasiado óbvia, ao apresentar os cabos dos guarda-chuvas mas não os topos. Além disso, a partir da cor e dos ornamentos dos cabos, a capa remete-nos subtil mas eficientemente para o Oriente, que é o espaço da narrativa.


Esta série da Companhia das Letras, que inclui, entre outros, os livros do Afonso Cruz e do João Tordo, caracteriza-se habitualmente por esta elegância (até nas lombadas, que é um gosto ver na estante, fazendo, por isso, quase um efeito de colecção); razão pela qual fiquei particularmente "desgostosa" com a capa que se segue.


Esta capa, na minha opinião, não possui nada da beleza que costuma ser regra nos livros do João Tordo, nomeadamente nos que são publicados pela Companhia das Letras. Penso que é a doença dos thrillers –  e, devo acrescentar, mesmo entre os thrillers considero haver capas mais artísticas ou, pelo menos, mais bem-conseguidas. Embora queira muito ler o livro (não deixaria de o querer apenas pela forma como vem embrulhado), tenho pena de que a capa seja plastificada em vez de papel, das letras brancas garrafais, da fotografia (que talvez resultasse melhor se não fosse o desenho da letra) e, acima de tudo, como se o design da capa não o gritasse já, da legenda THRILLER, em baixo.
Acho que existe aqui uma tentativa de apelar a um novo público, um forte medo de que as pessoas não reparem que é um thriller, de que este livro não se destaque dos restantes do João Tordo –  como se o habitual público de João Tordo não fosse ler um thriller e quem lê habitualmente thrillers não lesse João Tordo. Mas penso que acaba por ser quase uma situação em que, como dizia o Chip Kidd na Ted Talk, se desenha uma maçã e se escreve "maçã" por baixo. 


Inês Rebelo

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O Senhor do Adeus

Para quem passou despercebido pelo link da matéria sobre a morte do Senhor do Adeus, citado na sebenta, segue aqui, ao alcance de um clique. Pena não ter chegado a Lisboa a tempo de receber um de seus acenos...

"Essa senhora (a solidão) é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias da casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de sentir gente."

https://www.dn.pt/portugal/sul/morreu-o-senhor-do-adeus-1708177.html

Aula 2 - visita de estudo: um lançamento

 Obrigado por terem vindo ao lançamento com entusiasmo. Terão reparado que havia uma sala em baixo, depois fiquei lá a conversar com um par ...