E ontem a Margarida lá entrevistou um escritor português com fama tipo C. Estabelecemos as regras antes: ali, como num palco, tínhamos de estabelecer o tratamento. No Governo Sombra, o moderador Carlos Vaz Marques trata os colegas por «você» (em Portugal, sinal de distância) e eu acho que não havia necessidade. São amigos, ainda são relativamente jovens. o «tu» seria adequadíssimo. Mas é a opção deles.
No teatro amador, quando pessoas com diferentes funções na empresa representam o Rei Lear, não dizem «Para onde vai, sra. diretora Cordélia?» caso quem interpreta esta seja na empresa a diretora...
Aqui, a Margarida e eu estipulámos o «você de respeito à portuguesa» - que consiste em evitar dizer você mas usar a 3ª pessoa. Sem «professor», obviamente. Não era uma entrevista entre aluna e professor, mas entre entrevistadora e convidado.
Gsoto muito de falar de técnica (e a aula tem isso no nome) mas também gosto de falar dos limites da técnica.
Dominar a técnica é importante para depois esquecer a técnica. Ontem tive um momento feliz, acho, quando lembrei a espargata do Karate:
treinar um movimento contranatura, até o tornar natura.
E não é só um autor mas também um editor que, através da prática,
torna intuição aquilo que era titubeação. Aquele momento em que quem vai ao mercado comprar peixe sabe num instante se este é fresco ou não, enquanto um debutante anda para ali a cheirar, a olhar, a perder tempo.
Mas, no início de carreira, perder tempo a aprender é importante.
A técnica tem outro problema: há coisas que são importantes aprender mas que eu não consigo aprender. Esqueço. Vou sexta-feira próxima fazer um novo minicurso para preencher com ajuda de um computador uma declaração de impostos nos Estados Unidos, porque esqueci tudo o que «aprendi» há dois meses num curso online semelhante. E tomei notas, mas não consigo decifrá-las: ou seja,
não foram boas notas, porque as notas são como a capa, a contracapa, o índice, o press-release de um livro, ou um sumário: devem ter os elementos suficientes para puxar tudo de volta.
Como uma jaula para apanhar lagosta. Basta uma corda para a puxar, mas tem de ser uma boa corda, que aguente o peso.
Ou ver um táxi à porta da faculdade e mandá-lo parar. Há duas formas que são más: erguer os dois braços não é preciso, o taxista ainda pensa que fomos assaltados e acelera; não erguer braço algum faz com que ele não saiba que queríamos um táxi.
Sempre o princípio da economia: não gastar mais energia do que a necessária. Fazer com que aquilo que nos é difícil se torne tão fácil como respirar. Mas isso leva tempo, exige trabalho e paixão. O exemplo neste caso não vem de cima mas de baixo: não é fácil para uma criança aprender a andar de pé, mas ela quer fazer como os crescidos e, a cada queda, insiste. Leva meses. E, depois, de se aguentar de pé, leva anos a controlar esse novo superpoder.
Eu parti a cabeça aos cinco anos porque estava a correr e perdi o controle das minhas pernas. Lembro-me perfeitamente de ver um banco de jardim à frente e dizer para mim mesmo: «Ups! Não vou conseguir deixar de bater com a cabeça ali.»
Felizmente estava num quartel de bombeiros, a ver o meu irmão mais velho aprender a nadar, e não há melhor lugar para ter um acidente. Foi a primeira de muitas vezes que fui levado ao hospital numa ambulância. Três anos depois voltaria a partir a cabeça, mas aí atirada por um colega e amiguiminigo da rua - o Janeca - que já morreu porque se meteu na droga e nunca conseguiu sair.
Então,
há técnicas que eu sei funcionam, mas que eu não posso aplicar, porque não o sei fazer. Ou porque não me interessam, não me apaixonam.
Ontem, depois da entrevista, a Margarida e eu falámos um bocado. Concluímos que foi um pouco longo.
Nos concertos em estádios, o público pede sempre «só mais uma» no final do concerto, se gostou. Mas há músicos que ficam tão lisonjeados e decidem, generosos, dar quase mais meio concerto. E as pessoas começam a fartar-se.
Há poucos anos, fui ver a versão curta de
Fátima, um filme português de João Canijo com atrizes de quem gosto muito: um
road movie com onze peregrinas a caminho de
Fátima, por estes mesmos dias. Acontece que, na dificuldade de cortar cenas de que «gostava muito» (cada uma seria como um filho), a partir da hora e meia o filme exigia cada vez mais de quem estava na sala: para o fim ficaram só os cinéfilos. E um filme que eu adoraria ter recomendado a toda a gente virou, a cada 10 minutos, cada vez mais só para um grupinho.
Isto acontece muito com o cinema português. A dificuldade em deixar coisas boas de fora, porque já são a mais. Mas tem de ser.
Marie Kondo, ajude os cineastas portugueses!
Há uma expressão comercial americana: «
Já vendeste o carro. Não o compres de volta.»
Temos de saber parar. Mas, claro, falar é fácil. Eu também sei como se resolvia a pandemia. Era assim: resolvia-se. E pronto!
A Margarida e eu tínhamos acordado que à volta de uma hora era bom. Foram quase duas horas, porque ambos somos prolixos.
Um daqueles casos em que eu conheço a técnica, posso dar aulas sobre ela, mas não a sei aplicar. Falho sempre, miseravelmente!
A Margarida tinha 19 perguntas preparadas. É bom ter um plano - para o caso de o entrevistador ser taciturno e sucinto. Mas o ideal é a dada altura (como numa história) o plano ser esquecido. Afinal serem respondidas só oito. Ou ir por outro caminho completamente diferente.
Quanto ao famigerado «trabalho final», o caso da Margarida é exemplar e pode ajudar-vos: por mim, aceito/aceitaria este projeto
Covidarte como trabalho final.
O tom da Margarida foi (mas espero a vossa opinião, assistir à entrevista era para nota) certo. Pode e deve melhorar, mas é natural q.b., e ela tem - com o tempo - de encontrar dentro da panóplia de técnicas e conselhos, o material que pode utilizar, que se adequa a ela, e o que infelizmente nem por isso.
O grande entrevistador encontra a sua forma pessoal. Errata: encontra (
com muito trabalho) a sua forma pessoal.
Uns são afáveis mas depois atacam de repente (tipo seleção brasileira quando jogava bem, no tempo do Sócrates e do Zico e do Falcão), outros são afáveis do princípio ao fim, outros são secos e distantes, e também está bem, outros conversadores (na rádio é uma vantagem), até há uma excelente entrevistadora que gagueja e fez imensa rádio e televisão: a
Maria João Seixas.
Há entrevistadores que acalmam e outros que enervam - até há entrevistadores que torturam (um interrogatório, se virmos bem, é uma entrevista, só que um bocadinho hard-core).
Gosto muito de um provérbio português que elogia a forma:
Pelo andar da carruagem, vê-se logo quem lá vai dentro.
Termos uma voz distinta, num mundo com tantas vozes, é um privilégio.